Observar através da janela a cidade que, embora às vezes suja, guarda muitas belezas. Perceber que há pessoas diferentes convivendo em um mesmo espaço – um rapaz tatuado que não tira os olhos do celular, um homem cego com seu cão-guia, um músico e seu violão ou uma senhora segurando um vidro cheio de borboletas. Essas são algumas das experiências que o menino Cadu tem ao andar de ônibus no livro Última parada, Rua do Mercado, de Matt de la Pena.

Ao lado da avó, Cadu aprende que é preciso ser gentil com os outros, dizer boa tarde e oferecer o assento no ônibus a quem mais precisa. “É um convite para olhar ao redor com disponibilidade para perceber a poesia nos detalhes e, principalmente, nos outros”, diz a obra, que faz parte do conteúdo trabalhado com crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental no Colégio Marista Anjo da Guarda, em Curitiba (PR), para desenvolver nos pequenos habilidades socioemocionais, como a empatia.

Estudos feitos por universidades ao redor do mundo indicam que ler torna as pessoas mais empáticas. A pesquisa de autoria do professor Keith Oatley, do Departamento de Psicologia Aplicada e Desenvolvimento Humano da Universidade de Toronto, no Canadá, aponta que, ao investigar a vida de personagens da ficção – suas emoções, motivações e pensamentos –, o leitor pode formar suas próprias ideias e aplicá-las na vida real.

Para Oatley, que também é romancista, o estudo reforça a necessidade das humanidades em escolas e universidades como parte do processo educacional. Fortalece, ainda, a ideia de que a ficção, não apenas em livros, mas em romances, contos, peças e filmes, não é apenas entretenimento, mas “tão importante quanto estudos de engenharia e negócios”.

 

Literatura, uma aliada no dia a dia escolar

Professora e pós-doutora em Artes pela Universidade de Campinas (Unicamp), Fernanda Maria Macahiba Massagardi acredita que ensinar não é simplesmente determinar, informar e deixar as crianças ansiosas com “uma quantidade desumana de conteúdo sem sentido”, mas sim mediar, levar o aluno a pensar e agir a partir de reflexões individuais e coletivas. Ela sustenta que, além de possibilitar a imersão em um mundo de sensibilidades, a educação literária contribui para o desenvolvimento cognitivo e afetivo, na medida em que proporciona a formação de um sujeito crítico, que não apenas decodifica, mas interpreta e recria situações. Em sua tese de doutorado, Percursos da Literatura na Educação – Ensinar Contando Histórias, a pesquisadora analisa as obras Nárnia, de C. S. Lewis, e Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, nas quais aponta a relação de alguns personagens com o desenvolvimento da criança.

Trazer essas relações para a sala de aula requer um professor com conhecimento sobre o processo criativo, a representação do mundo na criança, a aquisição de conhecimentos, a vida real e os sonhos de seus alunos – além de entender quais fatores incentivam as crianças a buscar momentos de prazer e conhecimento na leitura.

Por seu lado, as crianças aproveitam o “faz de conta” para elaborar, ainda que de maneira inconsciente, seus pontos de vista. Celize Ogg Nascimento Domingos, coordenadora pedagógica dos anos iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Marista Anjo da Guarda, em Curitiba (PR), conta que os pequenos são capazes de observar conflitos e emoções de personagens. Na instituição, o conteúdo trabalhado com alunos do 1º ao 5º ano aborda, especialmente, questões relacionadas às diferenças, presentes em livros como Diversidade, de Tatiana Belinky, O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha, e o já citado Última Parada, Rua do Mercado. Os efeitos da literatura transpõem a sala de aula e acabam chegando aos responsáveis, diz a coordenadora.

“Pedimos aos pais para buscar na literatura formas de conversar com a criança, que muitas vezes não sabe verbalizar algumas coisas, mas encontra na fantasia um repertório maior para se comunicar”, diz ela. Celize cita como exemplo crianças que sempre pedem para ouvir as mesmas histórias. “Significa que aquele enredo vai além da fantasia, que está trazendo emoções que fazem com que ela, de alguma forma, se reconheça ali”.

A noção de que os livros guardam não apenas ensinamentos, mas também sentimentos e realidades particulares e sociais foi um aprendizado pessoal da pesquisadora Fernanda Massagardi. Para ela era mágico perceber que a Narizinho de Monteiro Lobato, como ela, também subia em árvores e gostava de se debruçar sobre as margens de um rio. “A mágica da literatura é que ela pode não ser real, mas oferece experiências muito mágicas”.

 

O aluno como protagonista de sua própria história

Para os jovens, a percepção da relação entre a literatura e as habilidades socioemocionais é um pouco diferente, mas o impacto é tão grande quanto. A experiência da Escola Estadual Aloysio Barros Leal, no Ceará, mostra que por meio do exercício de se colocar no lugar das pessoas é que se aprende a ter um olhar generoso.

Situada na periferia de Fortaleza, com uma significativa parcela da comunidade do entorno de origem negra, há três anos a escola passou a trabalhar obras das escritoras Conceição Evaristo e Angela Davis com seus alunos. “Quando trago Conceição Evaristo, trago uma escritora negra que traz na cor de sua pele o mapa de sua história, trago alguém que relata a história das mães, avós e bisavós desses alunos, que conta a história das mulheres brasileiras”, conta a professora Camile Baccin, especialista em Ensino Metodológico de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Com isso, diz ela, os alunos exercitam autoconhecimento, empatia, sensibilidade. “Muitos dos meninos e meninas se identificam e se reconhecem nas narrativas e na poética dessa escritora”.

O projeto surgiu de uma preocupação da professora em desenvolver nos jovens as competências socioemocionais para lhes dar ferramentas e lidar com um cotidiano em que o preconceito e os tantos “nãos” ouvidos todos os dias contribuem para torná-los insensíveis. “Comecei a me perguntar de que forma a literatura poderia impactar no desenvolvimento socioemocional desses jovens que vêm de uma realidade tão árida, de vidas tão duras, cheios de faltas, sem estrutura familiar e socioeconômica”, diz.

Livros usados por escola pública de Fortaleza (CE). Crédito: Camila Baccin

Partindo do que considera os principais pilares das habilidades socioemocionais – conhecer, fazer, ser e conviver – Camile apoiou seu trabalho na música e na literatura. “A gente se questiona: como é que minhas experiências podem desenvolver uma relação com a arte da literatura? Peço a eles que tragam suas histórias e seus relatos para que possamos confrontar com os textos. Eu trago as músicas dos Racionais MC e eles reconhecem as características da vida deles nas músicas do Mano Brown, enfrentando e quebrando paradigmas de uma sociedade tão injusta”.

O que diz a BNCC?

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem 10 Competências Gerais como pilares: conhecimento; pensamento científico, crítico e criativo; repertório cultural; comunicação; cultura digital; trabalho e projeto de vida; argumentação; autoconhecimento e autocuidado; empatia e cooperação; e responsabilidade e cidadania.

As competências são definidas como uma mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

 

Socioemocionais na prática

Essa definição aponta para a necessidade de os alunos serem capazes de utilizar os saberes adquiridos para dar conta do seu dia a dia, sempre respeitando princípios universais, como a ética, os direitos humanos, a justiça social e a sustentabilidade ambiental.

Na prática, as escolas devem promover não apenas o desenvolvimento intelectual, mas também o social, o físico, o emocional e o cultural, compreendidos como dimensões fundamentais para a perspectiva de uma educação integral. A despeito de todas as novas tecnologias, Fernanda Massagardi reforça que “o professor é o grande guardião do saber na hora de ensinar habilidades socioemocionais”.

A seguir, a professora Camile Baccin explica, passo a passo, como trabalhar habilidades socioemocionais com alunos do Ensino Médio. Para isso, ela escolheu uma atividade que pode ser desenvolvida em quatro horas de aula, com o intuito de despertar a empatia por meio do texto literário.

Passo 1: A escolha do texto
A escolha do conteúdo a ser trabalhado com os alunos deve ser minuciosa. Camile, por exemplo, avaliou todo o contexto de suas turmas do Ensino Médio e decidiu priorizar a literatura feminina negra com textos que recaem, sobretudo, na existência difícil das personagens femininas afrodescendentes, que enfrentam um cotidiano racista, estruturado num sistema historicamente preconceituoso. Tudo é intersecção: gênero, raça e classe, por isso a escolha do material.

Passo 2: Conhecendo os escritores
Os escritores podem ser apresentados aos alunos por meio de slides e/ou entrevistas disponíveis em vídeos em plataformas como o Youtube. Para isso, a dica é organizar a sala em semicírculo para, em seguida, iniciar um debate.

Passo 3: A entrega do texto escolhido
Camile propõe que o material escolhido seja entregue individualmente a cada aluno. O momento deve ser de leitura individual e silenciosa.

Passo 4: A apresentação do conteúdo
A ideia é apresentar o conteúdo para toda a classe. Se for a leitura de um poema, por exemplo, a sugestão da professora Camile é que cada aluno leia, de forma voluntária ou escolhidos pelo professor, uma estrofe.

Passo 5: As vozes da sala
Agora é hora de ouvir os alunos. Promover o debate a partir do conceito de identidades e levantar a questão: quem se identifica com o livro/texto/poema?

Passo 6: O que é empatia?
Nesse debate, discuta o significado de empatia para preparar os alunos para uma produção escrita. A sugestão é que os alunos escrevam relatos pessoais relacionando suas histórias com o conteúdo abordado na aula.

Passo 7: Anotações
As anotações serão entregues à professora para uma revisão e devolvidos na aula seguinte para a reescritura. O resultado do processo pode ser um painel com a exposição dos relatos e dos textos lidos. O título do painel sugerido: Por que desenvolver a empatia é importante?